segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Boneco

Foi o bo-ne-co da virulência da casa. Pequeno, teve a nudez devassada. Crescendo, teve a privacidade negada. Jovem, teve o diário assaltado, criticado. Com ira calma de refém, rasgou página por página, vagarosamente, minuciosamente depositadas na privada pública. Obediente, repetiu os jograis. Adulto, viveu nu, exposto, silenciado, como por costume. E este seria o fim da história se não fosse o meio. Adulto, deixou o poço. Maldito, inventou o mundo. Com a doçura tensa de algoz, vestiu peça por peça, pele por pele, secretamente, delicadamente. Casou, mudou e criou o menino. Velho, contou a história que ninguém acreditou, exceto o menino, filho-herdeiro, pai-criança, homem-mãe, falado, bendito e registrado. Idoso, morreu em paz.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Artista

Nasceu artista numa família de tradição acadêmica. (I see your true colors). Parece que foi ontem. (Shining through). Num destes desperdícios divinos, herdou miseravelmente o nome do avô e do pai, fazendo deles apenas, e já com tanta responsabilidade, um neto. E como se o nome repetido já fosse uma forma de invisibilidade, decidiu crescer em tamanho. As unhas no talo de roer, com as beiras de sangue. Três diagnósticos por mês, por esporte ou por despeito. (I see your true colors). Peixe fora de suas águas. Com tantos discursos sobre si, lhe ofereciam auxílios inúteis, generosa e amorosamente aceitos como forma de se fazer presente. Cidadão de um outro planeta. Adeus, lobo menino. (Shining through).

sábado, 15 de agosto de 2009

Almas

Eu vi. Não era segredo para ninguém que nono Alesandro bateu boca com Padre Amedeo, que insistia em querer que os Emílio rezassem do mesmo modo que os Clemente, que tinham lá o seu próprio Reverendo. E aquela de proibir os batuques do terreiro de Sebastiana? Foi a gota. Eu me lembro do velho Alê, com a autoridade de um senhor feudal, com a dignidade de quem leva em si as marcas da intolerância, e jamais suportou cercas e dogmas: "Sobre o meu cadáver, Padre Amedeo! Sobre o meu cadáver! Essa fazenda é minha, e pelo menos nessa gleba de terra, cada um há de andar no caminho da sua própria alma."

sábado, 8 de agosto de 2009

Dona Santa

Dona Santa da olaria ensinou muita gente trabalhar desde cedo. Já idosa, sofria de um entalo na garganta, um fastio que não deu jeito nem com chá nem com reza. Para aceitar a cirurgia, fez a filha Terezinha prometer tomar conta do Bolota, menino pequeno ainda que ela pegou na rua, vivia com ele para cima e para baixo, levava no coração. Tia Carmem me disse que Bolota hoje é bancário de terno e gravata. Terezinha partiu com o circo de touradas e cavalos que tempos depois passou por ali. Essa eu vi.