quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Dona Sílvia

Na cidade, era Dona Sílvia quem arrumava os defuntos, continuando os cuidados dispensados em vida, aplicando injeção, lavando feridas, trocando gazes, ensinando, com o Sol e com a Lua, a hora e o jeito da medicação. Fosse quem fosse. Ser arrumado por Dona Sílvia era item de testamento, mantido por testemunhas e pelas juras dos filhos. Se as juras eram um exagero? Nem tanto, pois todo mundo sabia que Padre Amedeo fazia cara feia para as rezas e benzições que Dona Sílvia praticava com as fitinhas coloridas que encantavam as crianças, que confiavam a ela a cura dos animais de afeição da casa. Curativos, rezas, conselhos, fitinhas, fala mansa e segura, de dia e de noite, e na hora de nossa morte, Amém.

domingo, 18 de outubro de 2009

Bilhete

Eis que o paradoxo está posto: pergunta que resposta não quer e não pode. Eis a solidão última: legitimidade exclusiva do conhecimento auto-adquirido. Eis os muros do castelo divino: os oráculos, fonte maior. Eis a impossibilidade: escuta aprendiz na contestação humana imperfeita de futuro no subjetivo. Eis a voz que o deserto reclama: a fala para si, de si, por si. Eis o que sem: sem mim, sem ninguém, sem outro além. Eis a história: cada perda uma mina enterrada na areia do seu tempo. Eis o projeto perfeito: campo minado de regras demais. Eis o banquinho: acomodação na casa todas de todos. Eis a mistura: limites requeridos das pessoas erradas. Eis o velho: espelho quebrado no próprio veneno. Eis o oroboro do puer aeternus: fecho cíclico, estagnado e completo da carta vinte e um.

domingo, 11 de outubro de 2009

Banquinho

Este CD que você me devolveu na caixa de sapatos não é meu, deve ser de outra, como é o banquinho lá da sua casa, aquele que você me advertiu que eu deveria disputar o direito de sentar. Talvez tenha lhe escapado o detalhe de que esta cidade é pequena como uma van, e que nós mulheres somos mais unidas do que reza sua cartilha de senso comum cunhada na sua (frágil) arrogância filosófica. Nas conversas você apareceu como aquele que se olha demais no espelho porque morre de medo de um dia se ver, e, confesso, foi divertido ouvir o som dos seus discursos desmoronando, em meio à galhofa da sua estupidez. Você não alcançou o fato de que os úteros são lugares sombrios, embora os sorrisos sejam iluminados pelos colares e acessórios que desviaram eficientemente a sua atenção.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Elevador

Nunca na vida ficaram cara a cara. Do parto ao emprego, foram mais de quarenta anos. Até aquele elevador enguiçar: pai e filha perdidos na imensidão do metro quadrado abismo. O tempo sumiu, assim como o chão, mais pela presença impossível de estarem juntos do que pelo perigo da queda. A alma, como um tiro, revelou, ultrapassando os limites-coleira de filha, como quem já não sabe se fala ou pensa, infantil: 'eu queria que você gostasse de mim'. O pai permaneceu afogado e morto pelos antigos jogos enevoados de covardia. A filha-mãe cresceu, e se deu conta, secamente, de ter gerado, parido e nutrido sentimentos estrangeiros que traduziram vidas e vidas, pois o menino que se nos deu, o seu nome é pai, na inversão dos fatores desta matemática sem universo.