terça-feira, 27 de abril de 2010

Voz do pai

Fazia tempo que ninguém mais ouvira falar de Nelinha, desde o dia em que ela deixou sem lavar a louça do desjejum, e ali mesmo, na pia da cozinha, escreveu e assinou um bilhete de pouquíssimas palavras: ‘é preciso saber viver’. No alvoroço e na falação própria da cidade, com as mais variadas versões sobre o sumiço de Nelinha, Sr.Timorato Campos, sempre ridico, zeloso e fofoqueiro, fez as contas: ela levara, na mala do casamento, algumas peças de roupas, os documentos pessoais, o dinheiro do pote, o pente de marfim dado pela avó materna aos 15 anos, e a caneta tinteiro Parker, presente do pai quando ela nasceu. O pai, homem sisudo e cismado, fechadão e difícil, não permitia intimidades de comentários, nem dentro nem fora de casa. Fazia tempo que ninguém mais o ouvira falar de Nelinha. E ele nem se dava conta que a história mal havia começado.

sábado, 24 de abril de 2010

Voz do Rei

Nelinha, a honrada esposa do Sr.Timorato Campos, mantinha-se ordeira na execução das rotinas domésticas específicas. Sua intuição, mais um dia, lhe incomodou, mas há muito não lhe dava voz. Mas foi exatamente a voz que venceu o torpor. Não a voz marital de tom professoral e avaliativo, mas a doce voz do Rei Roberto Carlos, em mais um lançamento nacional. (Quem espera que a vida, seja feita de ilusão...). O rádio, o companheiro fiel. (Pode até ficar maluco, ou viver na solidão...). O grito esquecido da alma. (Toda pedra no caminho, você pode retirar...). A confusão. (Você pode escolher, é preciso saber viver...). A lembrança de si. (É preciso saber viver...). Sentimentos de cachoeira e vulcão no mantra: é preciso saber viver. Na mágica da música: é preciso saber viver. No abrir da porta e dizer de própria voz: é preciso saber viver. No caminhar probo para o inusitado: é preciso saber viver.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Planalto

Para ela, Brasília não é, nem nunca foi um planalto vazio. Também não é um qualquer lugar. Sagrada e profana, a cidade guarda histórias e segredos de vilas, aventuras, montes, rios, esquinas, cenas, motos, jornais, árvores, flores, bombas, cavalos, uniformes, bandeiras, fotos, calçadas, cigarras, amoras e amores. E se qualquer maneira de amar valia, valia o gosto pelo lugar de ser, pois nos sonhos, Brasília é a casa mater, matrix, mother. Casa acolhedora das ruas solitárias da madrugada. Espaço infinito solar e celular. Luzes que mostram o caminho no céu. Brasília antropométrica, toponímica, teosófica, antígena, última, metrectômica. Caminhos únicos de ida, de seguir em frente, abertos, generosos, sem querer virar estátua de sal. Mágica no invisível do cotidiano. Mata aberta e misteriosa, grama e capeta, secura e água, sol e frio: lapis exilis, lapis philosophorum. Cerratense de alma, quem lhe furtará o prazer?

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Negro

Ana, na maturidade, voltou a Ouro Preto. Foi lá quando criança, a contra-gosto, arrastada pela família que considerava elegante listar as cidades visitadas nas férias, como indicador claro de quem vive boa situação financeira. Sabendo que o destino brinca, sem dó com os sentimentos, decidiu brincar também e estar na cidade, assumindo que tudo muda. Refez a experiência de horror da infância diante do barroco, e pode, finalmente, apreciar a beleza da vida e da morte, dubiedade fundamental agora já integrada na alma. Mas foi na lanchonete modernosa edificada nos escombros da praça, ao entardecer, que se deu conta que lá estava ele, invisível a olho nu, parado no pilar, meio escondido, olhando Ana como se apreciasse alguém da própria família. Era jovem, forte, negro, com largas bochechas que se abriram num sorriso quando percebeu que Ana lhe retribuia, não sem um certo temor, o afeto e a consideração.