quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Ponta-cabeça

Sonhou a noite inteira com Franz Kafka, com quem teve diálogos fecundos, sim, porque os sonhos sempre se valeram de discursos, argumentações, números e frases, ouvindo Gadu. (“Ser capitã desse mundo”) Amanheceu no mundo de ponta-cabeça, como se estivesse numa estranha cidade onde os pedintes são arrogantes e debochados; os vendedores das lojas precisam ser adulados com muito tato, é preciso aguardar o fim da interminável conversa que os anima; os professores temem a hostilidade e a agressão dos alunos (“poder rodar sem fronteiras”); os pais mendigam o amor dos filhos; os funcionários contratados com o fim específico de representarem o bem público e servirem à população penduram avisos ameaçadores nos guichês, e sempre a culpa é do usuário, (“viver um ano em segundos”) que é responsabilizado por cada ato mal feito de cada servidor, numa imensa cadeia de incompetência e impunidade. Um mundo governado pela diversidade da casta dos imbecis. (“Quando mentir for preciso, poder falar a verdade”).

domingo, 2 de setembro de 2012

Beleza

Decidiu na vida ver beleza em tudo. Passou a contemplar a pequena florzinha, nascida do matinho, espremida no vãozinho do concreto, da ponta da calçada, aonde ninguém ia, arremate de construção por conveniência, deixado de lado ao ponto de juntar musgo. Ah, que musgo bonitinho, verdinho, parece que tem folhinhas pequeniníssimas, fractais, três tons quase parecidos de verde. As manchas no corpo viraram obras abstratas; os odores tornaram-se experiências sensoriais; no frio, admirava a capacidade de tremer; na fome, a capacidade de resistir; na doença, a intensidade da dor, a força do choro, a respiração que se vai, cada vez menor, e o olhar intenso, iluminado, despertando um sorriso íntimo, pessoal, único, e misterioso, marca de um adeus inesquecível. 

Escudo

É claro que você não me vê. Quando você aparece, aparece também o escudo, este que você não vê, mas sente; escudo que foi uma opção sua acerca daquele assunto, sim, você sabe, sobre o papel que você escolheu exercer na minha vida. Eu bem que racionalmente até te consideraria, nesta minha mania de dar dez a todos a priori, mas não há o que fazer após você ter atacado a criança. Exatamente a criança, o ponto mais sensível que desperta o que há de melhor, e o melhor foi... o escudo, este que você não vê, mas sente, e começa tudo de novo. Por que tudo de novo? Mas você não entendeu ainda, criatura? Agora nem escuta mais? Se emburreceu de vez? É nessas horas que a velha ri. 

Gesta

A gravidez foi mal recebida desde o primeiro momento. Onde já se viu uma pouca vergonha dessa? De onde ela tirou que poderia ter um filho fora da ordem, antes de ser autorizada, antes de ser legitimada, ainda que sem perspectiva para tal, pois é preciso fazer por merecer? Maldita, mal falada, desgraçada, demônia. Como tudo na vida, uma pequena diferença, uma desproporcionalmente grande emoção, confusa às vezes, intensa sempre, mudando parâmetros, lugares, crenças, horários, planos, carreiras. As pernas e os pés sentiam a terra generosa e prática: sim. Os olhos, a barriga, os seios, as vísceras, os braços: sim. A alma produzia uma certeza inexorável de ser: sim. Eu sou o que sou, eu sou loba e mãe.