domingo, 22 de maio de 2011

Maçã?

Nasceu menino numa casa de mulheres. Para lhe garantir um caráter bem moldado, ensinaram-lhe desde cedo as cerimônias próprias da educação: cumprimentar, manter as mãozinhas rentes ao corpo, usar colher e garfo. Era vestido com tecidos nobres, masculinos e discretos. Recebeu cada instrução com a doçura própria da família, mas foi na religião que nada fez sentido: uma maçã? por conta de uma maçã? só por isso? falar de olhos fechados? quem vai me ouvir? não posso ver os anjos? são invisíveis? para que servem se são invisíveis? tudo alagado? tudo morreu numa enchente? Desabafava na hora de dormir, depois que as irmãs deixavam o quarto, telepaticamente, com os dois moços e a moça, luminosos, que lhe velaram o sono até ser grande demais para percebê-los.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Anel

No anel, a metáfora. A abelha trouxe o mel, a cera, a disciplina, a vida comunitária, o voo trabalhador e o ferrão prontinho para ser usado... caso necessário. O besouro trouxe a eternidade, o renascimento, o mistério antigo e o escudo protetor. A libélula trouxe a delicadeza de ser, acima de tudo, mensageira, psicopompa. Três insetos dourados não espetáveis no isopor. Três linhas unificadas na base. Três pequenos brilhos. Portal indicativo da distância necessária ao espaço vital, ao qual só é permitido entrar mediante convite, com cuidado, sem calçado, sem arma. Nem é preciso ser especial para ver quem está, por isxtá naisx mouléc'las mizifii! Anel, anelzinho, anelzão, um triunvirato, uma tríade hermética divertidamente alojada no dedo médio, bem usado para mandar à merda... caso necessário.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Critérios

Falar: medalha. Dizer não: medalha. Dormir o sono dos justos: medalha. Desvincular-se: medalha. Retirar-se da mira do chicote: medalha. Centrar-se: medalha. Qualificar a própria percepção: medalha. Cuidar da criança sagrada: medalha. Conectar-se com o belo: medalha. Banhar-se de ervas: medalha. Rir de si mesma: medalha. Apiedar-se dos chatos: medalha. Prazer: medalha. Calor humano: medalha. Mandar à merda: medalha. Calibrar o radar dos sentimentos: medalha. Refletir e ressignificar: medalha. Leveza: medalha. Deixar o piano de chumbo cair no chão: medalha. Cortar, interromper, obstruir, inviabiliar o fluxo do veneno: medalha. Administrar o sucesso: medalha. Ouvir os recados da ansiedade: medalha. Cuidar da saúde global: medalha. Curtir os amigos: medalha. Soltar a voz na estrada: medalha. Ler, escrever, assistir, ouvir: medalha. Saber a diferença entre o charm e o funk: medalha. Ser: medalha.

domingo, 15 de maio de 2011

Alelo

Deve estar em alguma parte do cromossomo aquele conjunto de semelhanças que os une de forma tão especial. A própria história do suposto patinho inconveniente expulso raivosamente das casas, ferido de morte, defenestrado, enterrado no gelo anestesiador, à beira do lago, no quase. Ovo fora do lugar, origem sagrada reservada a quem bebeu a água benta do destino da loucura de ter o pescoço um pouco maior. Segredo de Siegfried olhando Mime: um asno pode gerar um leão? Defuntos nos armários, gerações de silêncios das guerras, amores inconfessáveis, misérias inúteis de quem não não consegue partilhar nem a dor do ponto cego. Alelo da bio-esperança descoberto nas conversas mais banais: a magia está no cotidiano.

Burocracia

O aprendizado das diferenças foi decorado tardiamente. Decorado, mas não aprendido, porque o sentimento nunca bateu, o que gerou muita confusão e sequela. Uma das mais difíceis de decorar é que haviam duas - e somente duas - categorias de pessoas: homem e mulher. Perceber o meio termo foi complicado: num extremo todos eram iguais, todos eram gente, e no outro, todos eram diferentes em perna, dente, mão, voz, pé, cabelo e nariz. Gente era um pouquinho, só um pouquinho diferente de bicho, mas não nos olhos. Piorou quando descobriu que as subcategorias preto/branco e rico/pobre também contavam em termos de direitos, deveres e regras de convivência. Isso sem falar no tipo de nascimento: parto normal/cesáreo, família boa/ruim, com/sem pai. Vai entender a burocracia?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Injunção

Você pergunta o que foi? Veja bem: se tentava falar, era entrona; se ficava calada, era ausente; se fazia piada, era inconveniente; se falava sério, era tensa; se comia, era abusada; se não comia, era desfeita; se pedia, era dependente; se não pedia, era orgulhosa; se não fazia, era medrosa; se fazia, era agressiva. O exercício enlouquecedor da injunção ambígua permanentemente desqualificadora, aquela espada apontada na cara, amarrada com um elástico duro que não permite grandes mobilidades. Ele? Achava-se no direito de nomear sentimentos alheios, como quem classifica insetos vivos espetados no isopor. Sonso, quando confrontado, estirava-se no leito dos vitimizados, a sombra tenebrosa dos bonzinhos. Nunca cresceu, nunca se virou sem mamã-papá, onipresentes, disfarçados de tantas formas, expurgados em ritos caros e inúteis. Frágil. Pena errante vendendo-se como bússola. Superficial, bem ao gosto dos literatos de meia tigela. Ana percebeu logo nas primeiras horas.