domingo, 27 de setembro de 2009

Vinho

Para ele, honrar um bom vinho dispensava qualquer cerimônia, pois era ato tão nobre e prazeroso quanto sorver água do riacho, a mesma água dos peixes e das algas, após uma longa caminhada num dia quente de trabalho. Para ele, saborear uma comida com ingredientes raros era como ter nos braços a pessoa amada: não eram necessárias as camas palacianas e bregas dos motéis. Os pratos eram servidos com a louça branca, em porções fartas, e ele aguardava, com doçura de menino, o sorriso da primeira garfada, a festa de passar o pão no prato, o olho que se fechava, como nos sonhos, ao beber, nas canecas, o melhor vinho tinto da praça.

sábado, 19 de setembro de 2009

Mato

O mato despertava nele os melhores sentimentos. Ficava mais solto, mais calmo, mais dono de si, ao adentrar, com reverência de filho, o lugar dos tatus, das corujas, dos buritis, onde o tempo e a luz fluem diferentes. Com emoção de unus mundus, cumprimentava a enorme barriguda, idosa e já sem espinhos, perto do curral antigo. Olhava sempre para uma clareira, onde pousava um tronco raiz, e imaginava-se de capa e chapéu bandeirante, ao cair da noite. Sabia da rudeza da terra e dos bichos, guardava o silêncio diante do fogo e mostrava pela água a gratidão que só o coração dos bravos é capaz de ter.

sábado, 12 de setembro de 2009

Recados

As crianças faziam bonito nos velórios, arrumadas e quietas. É que elas aguardavam a velha Bila, estrangeira, com os recados à beira do caixão, ditos em voz alta, acompanhados um a um de bilhetes por escrito, varando a noite, como quem reza um mantra, cadenciadamente: diz-pra-Teodoro que o viúva ainda guarda luto, mulher decente, honrada e beata, amém, diz-pra-Mussein que o filha se perdeu com o Zé da Vaca, cruzencredus, amém, diz-pra-Catarina que Pedro se casou com moça boa, feia, mas boa, amém, diz-pra-Padre-Creuzonton que Padre Amedeo é um estúpido, ái que falta que me faz Padre Creuzonton, amém, diz-pra-Mama que paguei a promessa pra Santa e que não me reclame mais, vá, amém, diz-pra-Adhara ...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Sétima

Picapáo e Faceira, Cascivão e Pharopha, Rompante e Soberba, Bidalgo e Polintra, Letrado e Giganta. A cada casal de bois, a mágica do riso solto que só as crianças possuem. As crianças e tio Luigi. Se manusear um documento tão antigo era, em si, motivo para o tom solene, a leitura dos bens parecia uma outra língua: uma arcadeira de prata assentada em solla de vinte mil réis, um par de canastrinhas de oito mil réis, um zombilho de dois mil réis. Nunca soubemos o que eram aquelas coisas, nem aquela gentarada de nome grande. Sabíamos que eram nossos avós, de sete gerações para trás. Como é que se diz? Avós à sétima?