segunda-feira, 31 de maio de 2010

Questã de letra

Aprender a letra do Hino Nacional foi o desafio que tomou para si, com honras patrióticas, com estrela e chapéu de papelão feitos pelo avô para colocar sobre o uniforme da escola, com a advertência de que a espada feita com viga de construção ficaria restrita ao terreno da casa, que, afinal de contas, não era pequeno. Era bonitinho ver aquele menino tão orgulhoso de ser brasileiro, em tempos de ditadura, e longe ainda da copa do mundo. Cantou do jeito que entendeu, com ênfase e coração nas partes mais empolgantes: pátria amada! idolatrada! salve! saaaaaalve! Cantou a tarde toda, cantou como quem descobriu na vida o sentido de amar a própria terra. Soube alguns anos depois que o tio fora preso por fazer uma versão pândega do Hino, e só não foi morto porque aceitou trabalhar em alguma coisa que nunca ninguém lhe explicou direito o que era.

Questã de músca

Ao chegar no prédio da escola, agiu como se fosse familiarizado com os procedimentos de entrada, de permanecer calado, de ficar onde lhe colocassem, de por a mão no peito, de olhar para frente, ainda que não visse nada, pois, pequeno, era o último da fila. Ouviu uma música que vinha de um alto falante parecido com o que tinha na igreja matriz, incluindo os ruídos e zumbidos, e aguardava cada passo daquele rito com curiosidade e atenção de caçador, pois sabia que, na vida, estávamos todos juntos e sós. Quando a música começou, sentiu algo diferente do que sentia com os lamentos vindos dos hinos das manhãs de domingo, ou da banda que abria a alvorada do carnaval. Era a música que todos cantavam e, apesar de não saber a letra, grande e incompreensível, foi tomado por um orgulho íntimo de ser e estar ali.

Fuga

Diante das situações mais graves, a alma saía correndo, e o que ficava era um corpo de pé, mortificado, respondendo biologicamente aos estímulos de modo primitivo, com rosto pálido em choque. Aprendeu isso nas surras da infância, quando experimentava a impotência em estado bruto, loucura de uma geração de adultos que cresceu acreditando que rigor, disciplina e respeito se impunham com o chinelo, com a vara, com o chicote, até mesmo com a antena quebrada do rádio do fusca. Se por um lado a desconexão pelo pavor extraía a alma, por outro lado lhe dava coragem de zumbi morto, para passar incólume pelas durezas da vida. E, de fuga em fuga, de vez em quando, encontrava outras almas que aguardavam a vez para retornar, esperando o corpo torturado pedir por mais uma respiração, ou se despedir de vez, às vezes a contragosto, de mais uma missão viagem.

domingo, 16 de maio de 2010

Santo

Seu Benício, descalço, assentava meticulosamente o piso novo da igreja, consolando as tábuas centenárias de madeiras, pois agora seriam cobertas por piso de cerâmica imitação de pedra, e despedia-se de cada uma delas, e abençoava cada uma delas para o merecido descanso, ignorando solenemente a irritação pela demora da obra, que mantinha as missas na velha cabana do pátio. A Velha Bila discutia ao lado do altar com Padre Amedeo sobre quando os Santos haveriam de dar as promessas como quitadas, posto que foram feitas pela sua falecida mãe para que ela as cumprisse, o que achava um abuso, já não bastasse o trabalho todo que deu enquanto era viva. Como se conversar com gente fosse tão exceção quanto conversar com santos, Seu Benício voltou-se para o altar e disse: “santo que precisa de promessa, não me parece muito”. Começava aí uma amizade entre as duas pessoas mais improváveis, a Velha Bila e Seu Benício, que duraria toda a vida.