quinta-feira, 7 de junho de 2012

Camisa

Não era apenas uma costurinha, um cerzidinho. A camisa estava irremediavelmente rota, desgastada na frente e nas costas, nas mangas e nas bainhas. Os olhos solicitantes da criança contrastavam com as roupas que denunciavam que essa geração era produto das cordas de tempos antigos. Roupas, pratos, casas, plantas, caminhos de exaustão, de falta, como uma cornucópia às avessas, numa eterna e irremediável precisão disso e daquilo e daquilo outro, sem fim, sem bastar jamais, como uma dívida de honra, infinita e impagável por definição. Bastou levantar um pouco os olhos para perceber o visgo musguento da fila ancestral que se formava a perder de vista, incluindo vivos e nem tanto, numa estrutura espiralada, que lembrava Adenina, Guanina, Timina e Citosina. 

domingo, 3 de junho de 2012

Bonitão do lixo

De sã consciência, nenhuma daquelas pessoas esperava ver o que se mostrou ali. Ainda mais essa família  que faz questão de manter a superfície lustrada dos bons modos e da indiferença diante dos fatos da vida, onde tudo é encerado com uma pasta de naturalidade capaz de brilhar diante da igreja e do clube. Mas, usando a expressão de impacto que Padre Amedeo dizia nas suas mais inflamadas prédicas: 'eis que surge'. Eis que surge aquele homem coberto de musgo, lama, resíduos coloridos históricos enegrecidos pelo contato com a terra. Eis que surge aquele que é assim. É assim porque é assim.  Eis que trocamos olhares e despertamos sorrisos mútuos telepáticos, e, na mais sã consciência, para além de 1997, sua mão estendida foi mais do que um convite aceito. Eu sou o bonitão do lixo. Lembra como começou? Do alto da escada, surge o elefante, resta o outro, que amas, que amo.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Diferente

Uma coisa é não saberem cuidar, a outra coisa é não quererem, absorvidos que estavam nas suas próprias tramas, nas traições de suas próprias vidas, desnutridas e asfixiadas. Foi assim que o menino caiu no mar, meio assustado, meio aliviado por estar fora daquele barco. E foi assim que, sendo duas, saí da beira e saí do ar, para entrar no mar, atravessando com e pelo menino, passando com e pelo perigo, para trazer o menino príncipe para o seu próprio povo, que lhe rendeu reverência ancestral, na mais doce consciência de que as tradições tinham nele um caminho, honra preciosamente guardada aos que sabem ver. E ele, na simplicidade inerente à realeza, com a amorosidade dos que transcendem, ainda molhado, ainda criança, ainda pequeno, recebeu e distribuiu, alimento e esperança. Nisto está o diferente que busquei.

Alvo

São mulheres de um branco meio sujo cinza, olhos buracos com a cegueira dos tempos, rotas de roupas e de ventres, andar de procissão maldita silenciosa, secas de pensamentos, corações inúteis, ritos que se repetem desde o início do tempo dos esquecimentos das almas e das vidas. Grito mudo para passar despercebido, não fosse o fato de que entregam suas crianças como alimento e caça, crianças já herdeiras do cinza, da cegueira, do andar, do inútil, como se não bastasse o dano às gerações, como se bastasse perpetuar, como se não bastasse a dor, como se bastasse não ouvir, não falar, um pé, o outro, uma mão, a outra, todas as duas. Por isso o alvo ser quem tem a guerra no sangue, mas quem tem o sangue na guerra tem a espada, a palavra, o punhal e o cavaleiro negro que viveu mistérios para cravar o golpe que devolve à terra o que é do seu mais legítimo assunto.