quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Rainha

Ana, na maturidade, voltou a Ouro Preto. Foi lá quando criança, a contra-gosto, arrastada pela família que considerava elegante listar as cidades visitadas nas férias, como indicador claro de quem vive boa situação financeira. Sabendo que o destino brinca, sem dó com os sentimentos, decidiu brincar também e estar na cidade, assumindo que tudo muda. Refez a experiência de horror da infância diante do barroco, e pode, finalmente, apreciar a beleza da vida e da morte, dubiedade fundamental agora já integrada na alma. Mas foi na lanchonete modernosa edificada nos escombros da praça, ao entardecer, que se deu conta que lá estava ele, invisível a olho nu, parado no pilar, meio escondido, olhando Ana como se apreciasse alguém da própria família. Era jovem, forte, negro, com largas bochechas que se abriram num sorriso quando percebeu que Ana lhe retribuia, não sem um certo temor, o afeto e a consideração.

Neném

Ana, na maturidade, voltou a Ouro Preto. Foi lá quando criança, a contra-gosto, arrastada pela família que considerava elegante listar as cidades visitadas nas férias, como indicador claro de quem vive boa situação financeira. Sabendo que o destino brinca, sem dó com os sentimentos, decidiu brincar também e estar na cidade, assumindo que tudo muda. Refez a experiência de horror da infância diante do barroco, e pode, finalmente, apreciar a beleza da vida e da morte, dubiedade fundamental agora já integrada na alma. Mas foi na lanchonete modernosa edificada nos escombros da praça, ao entardecer, que se deu conta que lá estava ele, invisível a olho nu, parado no pilar, meio escondido, olhando Ana como se apreciasse alguém da própria família. Era jovem, forte, negro, com largas bochechas que se abriram num sorriso quando percebeu que Ana lhe retribuia, não sem um certo temor, o afeto e a consideração.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Sapo

Eu não imaginava que aquele homem sério, de terno elegante de linho cor de creme, chapéu e barba branca, impecável, quando era menino, um dia amanheceu encantado com o sonho do sapo. De manhã, na cozinha com os empregados, onde as crianças comiam, ouviu as notícias da distante Rio de Janeiro, o estado de guerra, a imposição da vacina, coisas terríveis. Mas ele tinha notícia melhor, tinha sonhado com o sapo grande, brilhoso, colorido, que tinha porta, boca que abria e fechava, e, obediente, levava as pessoas de um lado para o outro, mais rápido do que charrete, cavalo, ou trem. Saiu contando o dia todo para todo mundo, até ser motivo de riso, advertência e proibição. Foi lá na garagem da casa que ele me contou, quase em segredo, essa história do sapo, e me fez entender numa piscada marota de olho, o orgulho que foi ter o primeiro fusca da cidade.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Terra Santa

Depois que ouviu Ana ler em tom solene, com dedo em riste, em bom português, a famosa passagem do Liber Exodus, ninguém mais viu Seu Benício com qualquer tipo de calçado. ‘É terra santa’, dizia e repetia: ‘é terra santa’, ‘toda terra é santa’. Passou a conversar com os rios, negociar com a chuva, dar notícias da vila para as mangueiras do terreiro. Com as mãos acarinhava cada folha da samambaia velha do varandão, e uma vez chorou, com emoção de parto e nascimento, diante dos brotos de arroz no brejinho. 'Toda terra é santa', repetia com sorriso transcendente, inatingível, de quem entendeu e guarda um segredo bom: 'toda terra é santa'. Tio Luigi guardava por ele um respeito infantil, e o considerava um sábio, e se não fosse o medo das cobras, ele mesmo iria para o mato descalço.