segunda-feira, 26 de julho de 2010

Brilho de faca

Durante muitos anos, Sr.Timorato Campos proibiu música em casa. Atribuía à música poderes hipnóticos que teriam levado Nelinha ao despautério de ir embora, fato que nunca entendeu, pois, afinal, Nelinha tinha o que toda mulher quer: um marido para cuidar e se submeter, uma casa para exercer seus dotes naturais femininos, comida, roupas condizentes com a posição de esposa, além do presente adicional que a vida proporcionou a ela como mulher: de ser ele um homem que cumpria religiosamente suas obrigações maritais oferecendo uma vez por mês, sexo de boa moral, com orações antes para pedir permissão, depois para pedir perdão, isento de delongas lascivas. O que mais ela poderia querer? Já aposentado, deu para ligar secretamente a velha televisão no horário da novela, e chorar calado ouvindo que há um brilho de faca, onde o amor vier, pois ninguém tem o mapa da alma da mulher, um ser maravilhoso, entre a serpente e a estrela.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Nome

Ao ouvir Violeta Parra cantando ‘es como descifrar signos sin ser sabio competente’, sonhou, num devaneio lúdico e vígil, que ela própria cantava Volver a los 17, no alto de uma montanha mineira, com direito a coro, cachoeira, rio e violão. Tomada por este fado mítico, viu-se enredando, enredando, cantando, cantando, como uma oração embolada, com uma língua incompetente, que não acompanha mais os sinais estabelecidos. Como el musguito em la piedra, ay si, si, siiii. O sentimento pode mais que a razão. Volver a sentir profundo como um niño frente a Dios. O que é preciso para lembrar de Deus? Lembrar-se, apenas lembrar-se. E lembrou-se: meu nome não é Nelinha. Meu nome é Antonella. Antonella. Antonella. Antonella. Eso es lo que siento yo en este instante fecundo. Decifrando signos, depois de viver um século, um diamante fino, numa alma serena, como um niño, ni el más claro proceder. Antonella.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Comida


Não era normal. Aquela criança ficava horas sentada à mesa até que terminasse de empurrar pela garganta, porção a porção, toda a quantidade designada da comida. Os horários ela sabia de cor, lidos no relógio com precisão. O desjejum, 5:30 às 9:30 da manhã. O almoço, 11:00 às 15:00. A banana da terra, de 15:30 às 17:30. O jantar, de 17:30 até às 19:00, hora de criança dormir. Comida melada, descolorida, empastada, enegrecida, misturada, empapada, feia e fria, comida de adulto, em prato adulto, em quantidade adulta, feita por adultos, num silêncio adulto, em disciplina rigorosa adulta. Asco e horror durante todo o dia, sem rir, sem falar, um pé, o outro, uma mão, a outra, uma palma, porção a porção, náusea, dor, solidão, silêncio: boca é só para comer. Horas e horas e horas olhando fixamente, buscando perceber o movimento sutil do ponteiro, do maior e até do menor.

Relógio

Não era normal. Aquela criança ficava horas olhando fixamente o relógio na parede. Horas. Um relógio vindo de além-mar, antigo, relíquia de gerações. No vidro da frente, algodão suave embebido em álcool; dois ponteiros e o pêndulo lustrados como se fossem de bronze raro; números esguios, claros e elegantes sob fundo branco; marca bem posicionada entre o centro e o seis; na madeira feltro e boa cera; corda reabastecida para garantir que jamais parasse; ajustado no prego, no centro da parede coluna, no centro da sala de jantar, no centro da casa alugada desde tempos imemoriais. Um toque de blam, preciso, baixo, mas firme a cada 30 minutos. Música compassada e toques fortes, militares, de blans e blans correspondentes ao número de horas, só para quem sabia contar, claro. Horas e horas e horas olhando fixamente, buscando perceber a mágica do movimento sutil dos ponteiros, do grande e do pequeno.