segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Cheiro

Ana aprendeu com Sebastiana umas rezas em língua estrangeira que parecia um murmúrio, quase um lamento vindo do coração. Vez ou outra aparecia com velas coloridas em casa, fitas e adereços, colocados com um gesto específico para cada santo e santa. O velho Alê fingia não ver, e proibiu que se contasse para o Padre Amedeo. Tio Luigi, logo tio Luigi, que recusava-se a aceitar o ‘nunca mais’, viu que Ana sabia sentir o gosto estranho da presença sombria e autoritária da morte, reconhecida anos mais tarde, tantas vezes, nos leitos dos moribundos. Também sabia sentir o cheiro da vida, e de longe sorria para as mulheres, antes mesmo da barriga crescer, cúmplices de alma. Ana, de botina e saião, na Husqvarna, com mandingas de Sebastiana, olhares de mulher e bigodes de carvão.

domingo, 29 de novembro de 2009

Estatística

A pequena Ana, nome que tio Luigi sugeriu em homenagem à tia Annita, cedo cedo na vida ganhou a fama de ser fora da média e fora da moda. No tempo da mini, adorava usar saião. No tempo da Monareta, se encantou com uma Husqvarna cinquentona. No tempo das calças baixas, usou suspensórios. Deixou os cabelos lisos quando todo mundo os enrolava com algo que fedia. Para ela, botinas sempre foram uma boa opção. Detestou War: para que ganhar, se alguém perde? Dominós só serviram para empilhar. Amou os negros, os pobres e bateu pé para ser índio no carnaval e noivo na quadrilha, com gravata e bigode de carvão. Fora do tempo, fora do lugar, fora daqui, cada vez mais em si, com variações entre largo e vivace.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dancinha

Foi num desses bailinhos de garagem, bem próprios daqueles tempos, que a pequena mas já não tão pequena Ana, provou aquele sentimento. Veio com o fato de precisar de um par para dançar. No terreiro de Sebastiana, os batuques levavam a alma para passear. Na escola, o Hino Nacional fazia pular o coração patriota. Nas igrejas, sempre uma música triste e de advertência, cantada em lamentos de culpa, com direito a sangue e punição. No final da tarde, a moda de viola dos antigos contava histórias de dormir. Mas nas dancinhas de garagem, a música lenta, com o obrigatório inglês da moda, exigiam um par. A pequena Ana, a Ana branca da boneca negra, ao olhar para cada menino, para cada possível par, arrumado e sentado, sentiu o que mal sabia ela que atravessava gerações de mulheres: que era melhor contar apenas consigo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Senzala

Todo mundo sabia que perto do casarão ficava a casa maldita e abandonada, feia, de telhado baixo, paredes tortas, suja, triste só de olhar. Entre as crianças se falava, em tom de ameaça, como se fosse exemplo e possibilidade, dos castigos e prisões que aconteceram ali, com a perversidade que só os adultos sabem ter. Os meninos eram os primeiros a correrem, mas eu mesma via a pequena Ana atraída pelo lugar, olhando fixo, se aproximando, cantarolando como se ouvisse ali uma música dessas de batuque que aceleram o coração. Virou e mexeu, Ana apareceu com uma boneca de pano antiga, negra, conversando e tagarelando como se fossem grandes amigas. Sebastiana dizia que Ana tinha alma africana, de espírito valente, guerreiro e antigo. Ana retribuía com um longo sorriso orgulhoso que só as crianças podem ter.