sábado, 31 de dezembro de 2011

Fim

Ana recebeu instrução específica sobre perda e recomposição deste estado, sobre as repetições sutis, risíveis, patéticas. Se a magia está no cotidiano, se as grandes coisas estão no que é diário e invisível, também os grandes tropeços estão no pequeno, no que é aparentemente inofensivo. Sim, era preciso aguçar o olhar para as sombras, e que problema havia se isso implicava em ser duas? E ainda fique agradecida por ser só duas, tem gente que é três, quatro, sei lá quantos. Palavras e instruções enquanto a pupa se quebrava, na intimidade que o chão proveu. Foi assim que Ana finalmente repousou com a tranquilidade dos que sabem desfrutar do fim.

Filtro

Ana sentiu a estrutura da pupa filtrar de modo refinado a loucura da serenidade, discriminando, desvendando. E novamente sorriu ao ser invadida por um descanso profundo, ao ser posta novamente no chão, com o natural endurecimento e esfacelamento da pupa, que agora tomaria a forma mais seca e quebradiça. Surpreendeu-se quando a luz em forma humana lhe disse que era isso que havia acontecido com Jesus. Ah, Jesus, só me faltava essa agora. A luz sorriu para Ana, pois as duas sabiam da irrelevância das diplomacias neste lado; e as duas sabiam que não era só "de Jesus" que se estava falando ali.

Pupa

A proximidade amistosa da luz em forma humana foi a segurança necessária, somada à incomensurável preguiça para que Ana se deixasse embrulhar naquela gosma seca e branca. Ana achou engraçado revirar-se daquele jeito, como um girar em torno de si mesma, sem dor nem nada. Percebeu que seria pendurada no teto por aquela estrutura incomum e de novo achou engraçado naquela altura da vida virar uma pupa agarrada de cabeça para baixo no teto da varanda, mais uma prova cabal de que a vida não tem sentido algum. Se a ideia de guerra havia lhe passado pelo coração, agora lhe atravessava a derme, sugada pela gosma purificadora e nutritiva.

Meio

O chão. Para o chão. No chão. Chão de bambu da nova casa, meio varanda, meio aberta, meio fechada, sobrado, meio residência, meio comércio, lugar de todos e propriedade de ninguém. Estar assim, no meio de tudo e no meio do nada, no chão e suspensa, produziu a leveza de quem deixa a mala cair, cair no chão, é claro. O trabalho começaria amanhã, então só restava dormir, dormir no chão, abraçada ao chão de bambu, como quem reconhece o colo amigo num grande suspiro daqueles que servem como um escorregador para entrada naquela água onde o tempo não manda.

Chão


Ana se deu conta que o dia terminou com o sentimento de paciência cheia; que a semana terminou com o sentimento de estagnação; que o mês terminou com o sentimento de fracasso e que o ano terminou com o sentimento de desperdício. Produtos próprios de todos os arranjos necessários para sobreviver às loucuras do oceano e do peixe. Sandice intercontinental, descontextualizada, desambientada, desadaptada, desestruturada, insustentavelmente e individualmente heróica, fadada ao fracasso pela falta de base própria, fincada no ar, como a bailarina que se sustenta bela e efêmera, voltando para a terra, para o chão, para a vida, para a morte, para a natureza. 

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Duas

No meio do caminho, o ajuntamento do que é típico tornou-se atípico, e lá foi Ana desajuntar, retirando do acúmulo simbólico a experiência doída de cuspir  para fora do corpo, para fora da alma, para fora de si. Ana há muito sabia ser duas, mas percebeu que havia uma diferença agora: ser duas era necessário no mundo da loucura do outro, e lembrou-se de Sebastiana, que sabia ser duas harmoniosamente. Sebastiana negociava duro com os encostos, tirando satisfações e esclarecendo desaforos deixados para trás pelos pobres diabos que achavam que tudo na vida era visível, sensível e audível. Ser duas agora era preciso, como era preciso portar uma vara invisível flexível, dessas que são quase um chicote, banhada no branco, nas ervas e no mel, dada a gravidade da situação. 

Grega

De alma para alma tudo bem. Mas e de cérebro para cérebro? E de boca para ouvido? E de fala para fala? Como conviver com a loucura sem se ferir mais do que o necessário? Voltou no colo da inesperada Athena, proporcionalmente imensa e ironicamente grega. Se tudo na vida tem limites, estes foram designados pela borda casulo do escudo bordado e vivo. Invisível por invisível, sou mais o meu. Criança por criança, sou mais a minha. A exaustão sentida era legítima: era o saco sem fundo, insaciável, infinito da falta primeira de chão. Sem terra, sem eira, sem 'si'. Contigo e sem nada. Haja balão de elogios vazios para assoprar. Haja avião para voar para longe de si. Haja saco para encher. Agora é guerra. Ah, de novo a guerra... 

Rir e ter raiva

Ana reconheceu das antigas que essa sombra da ambiguidade era a loucura. Não uma loucura qualquer, mas a loucura do bonitinho, do limpinho, do sabidinho, e principalmente, a loucura do bonzinho. O disfarce mais batido, ainda vendido como necessário: o bonzinho que guarda em si o tenebroso, regado a álcool, disputa e traição. Isso sem mencionar as cenas mal atuadas de vitimização quase pueris, posto que encobertas com heroísmo barato e interesseiro. Para Ana era como olhar para uma criança com o rosto sujo de farinha negando que tivesse abocanhado o bolo. Dava para rir e ter raiva ao mesmo tempo. Ambiguidade loucura, sem síntese dos contrários, sem esperança de ter alguma saúde pela frente. De alma para alma, o anel de abelha, libélula e besouro foram símbolos necessários dada a gravidade da situação.

Continente

Era um continente a ser explorado numa viagem singular. Desde o início Ana foi advertida dos perigos, das doenças, da ignorância e da precariedade das coisas que iria encontrar. Ana manteve a discrição necessária sobre si. Ela que desde sempre conheceu línguas e rezas no terreiro de Sebastiana. Ela que desde sempre distinguiu os vivos dos nem tanto e dos que nasceriam logo logo. Viajou  aberta às possibilidades, quase desarmada, mas atenta à mudança de configuração que estava por chegar. A novidade foi saber que os perigos, as doenças, as ignorâncias e as precariedade das coisas viriam da fonte inusitada: a mão visível que aceitou empunhava a ambiguidade invisível e sombrio. No olhar brilhante da negra em dores, o adeus à vida, com dignidade real. Desde sempre.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Exílios

Depois de tantos anos, uma troca de olhares e a saudação 'Namastê!', com mãos juntas e reverência. 'Asinha?' Na sonoridade do nome antigo, o voo da Fênix no corredor empoeirado pela interminável obra do elevador. Apelido arriscado, pois alguma formalidade seria prudente considerando a sabedoria popular ligada aos gatos escaldados. Outros nomes foram pronunciados, juntando os cacos de notícias, no exercício de conferir o humor particular do destino. Reconheceram-se exilados do mesmo mundinho. No passado comeram da mesma comida e de vez em quando estiveram em margens diferentes do mesmo rio. Compartilharam a dor da difamação covarde, subreptícia, em nome dos céus, da obra, da vida, da morte, na unidade perfeita e higiênica dos radicais. Reconheceram-se nos ciclos humanos ambíguos e na força humana necessária para manter a própria honra, esse paradigma de caráter que une o jeca e o nobre. Asinha, Fueira, Lílis, Juca, Ninha, Cirim, Mêma e Bêra.