segunda-feira, 31 de maio de 2010

Fuga

Diante das situações mais graves, a alma saía correndo, e o que ficava era um corpo de pé, mortificado, respondendo biologicamente aos estímulos de modo primitivo, com rosto pálido em choque. Aprendeu isso nas surras da infância, quando experimentava a impotência em estado bruto, loucura de uma geração de adultos que cresceu acreditando que rigor, disciplina e respeito se impunham com o chinelo, com a vara, com o chicote, até mesmo com a antena quebrada do rádio do fusca. Se por um lado a desconexão pelo pavor extraía a alma, por outro lado lhe dava coragem de zumbi morto, para passar incólume pelas durezas da vida. E, de fuga em fuga, de vez em quando, encontrava outras almas que aguardavam a vez para retornar, esperando o corpo torturado pedir por mais uma respiração, ou se despedir de vez, às vezes a contragosto, de mais uma missão viagem.